segunda-feira, abril 04, 2005

Babilónia pintada de fresco

Uma certa vez, a grande Cadela Nocturna disse-me que estar os amigos era o mesmo que sentir uma sensação de aconchego semelhante a estar num casulo. Parece-me uma descrição apropriada para o que se sente. Ontem estive, de facto, num casulo quente e doce, numa daquelas situações em que, por qualquer razão divina, tudo parece estar no seu lugar. As pessoas, os espíritos, o local, a comida, o ambiente, enfim todos os ingredientes para uma noite retemperadora dos maus fluídos e pensamentos d'antão. Nesta época de coisas frias e impessoais, de relações fugidias e sentimentos de papel, é precioso poder sentir que se faz parte de algo que nos permite estar como somos, com muito menos máscaras do que no resto dos nossos dias. É saber que sim, que podemos ser fúteis, loucos, desiquilibrados, insuportáveis e todos esses estados afins, que não seremos julgados, pois do outro lado da barricada, com um copo de vinho argentino na mão, estão outros que tais, como nós. Por mais improváveis que possamos ser. Nada mais forte do que a improbalidade para unir as pessoas...
As coisas boas da vida são para ser gozadas sem pressas, com um certo estilo, uma certa sobranceria, uma displicência capaz de dar um sentido mais profundo às palavras, aos pensamentos, aos corpos e à sua linguagem. Assim mesmo, é com o cinismo inerente ao poder de ser dono de um segredo, que podemos verdadeiramente sentir que pertencemos a algo maior do que a própria existência do dia-a-dia banal e sem frutos. Os amigos, o álcool, a conversa, os bons locais, o saber dizer mal de tudo e de todos como forma de estabelecer uma ligação ente nós e eles, é um segredo divino, só revelado a alguns, poucos, de entre nós. Foi o que se passou? Não sei, mas é a criatura ruiva, em todo o seu fogo de artifício, a criatura jovem ainda educada e polida, mas já no bom caminho para a perdição. A boa, a nossa, a que deve ser. E é a criatura alva e pequena, grande e forte perante as forças de um infortúnio espúrio e vago, destituido de sentido e propósito. Firmes, orgulhosos, jovens, bem vestidos, bem postos, bem criados. É, comme il faut. Como não podia de ser. Como gostamos. O senhor Marquês sente-se privilegiado por poder desfrutar de tudo isto. E estragado para o mundo, pois tudo o resto parece tão aborrecido, tão desprovido de encanto...

I need to believe in something...

... dark clouds drift away to reveal the sunshine... (Space, Dark Clouds, 1996)

Se, ao menos, as nuvens negras não regressassem...

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