É uma daquelas noites com o fim do mundo à distância de umas quantas paragens de autocarro e toda essa história, na festa de aniversário de alguém, em Porto Covo. Há uma rapariga que tem o vestido puxado para cima e as cuecas à volta dos joelhos e que está a simular uma masturbação agressiva com a perna de uma cadeira partida. Um puto louro e bonito, de cabelo curto, está inconsciente num sofá. O resto de nós está a olhar para a lua que, esta noite, está em eclipse e acompanhada pela aparição de um cometa de cujo nome não me recordo.
De momento, a lua está vermelha e tem um aspecto curtido, como se fosse uma bola de bilhar a rolar para dentro de uma bolsa de estrelas. Mas em termos astrológicos e mitológicos, isto significa que, aparentemente, deve estar para acontecer alguma desgraça de proporções bíblicas. Li algures que o rei Herodes morreu depois de um prodígio destes... Em 1974, no Camboja, 16 pessoas foram mortas quando soldados em Phnom Phen dispararam contra o que eles pensaram ser um macaco a comer a lua... E no Japão antigo, o povo costumava deitar-se no chão, com a face virada para o céu, uivando para tentar afastar os supostos efeitos maléficos do eclipse lunar.
Hei, mas nós estamos num mundo pseudo-virtual e alegremente estúpido e supersticioso, não estamos? Século 21, costa do Alentejo, tentamos o nosso melhor ao som de qualquer coisa que já existe há muito tempo. Qual é a novidade? De qualquer modo, a rapariga ruiva está muito bela no seu vestido bondage de Vivienne Westwood, sem o mínimo ar de estar passada e olha para cima, algures. Alguém põe uma música chamada "Little Fluffy Clouds" a tocar. Os The Orb assentam na perfeição naquela atmosfera levemente lunática. Os céus tornaram-se uma estufa e as pessoas não estão muito longe disso.
Enquanto estou a ouvir a música, estou espantado com o que se pode fazer da nossa vida se realmente estivermos dispostos a isso. Penso no que podes estar a fazer neste momento. Provavelmente também estás a olhar para o eclipse, só que de algum lugar perdido no meio de lado nenhum, onde estás a foder alguém que não te interessa um caralho, só porque isso fica bem nas conversas com os amigos. Mesmo depois do casamento. Música ambiente e clubes techno no outro lado do mundo, quem poderia ter previsto uma cena destas há uns anos atrás? E eu a pensar em ti. Ainda e sempre.
Depois de demasiado álcool e substâncias ilegais, alguém me pede para dizer umas palavras sobre o amor da minha vida, ou melhor, sobre alguém que tivesse possuído a minha alma, o tópico de conversa a ser discutido no momento. O primeiro pensamento que se torna carne e vive é o de que a festa acabou, de todas as maneiras que consigo lembrar-me.
O meu amor por aquela besta maravilhosa não perdeu a sua viabilidade, é demasiado idiossincrático e abrangente e infernal para isso. A nossa relação sempre foi um sistema de tortura ligado a um sinal extraterrestre. Não, apenas acontece que o ambiente do qual ela nasceu está tão perto de se tornar um ritual, apenas e só isso, que está em vias de se transformar em algo sem qualquer significado. Uma experiência virtual.
A busca daquele pico último de sentimento que, na realidade, se vai tornando cada vez mais utópico todas as vezes que se inicia, é algo como ir a uma discoteca, despir a personalidade do dia-a-dia, dizer disparates, dançar como um epiléptico e depois relaxar madrugada dentro. É como atingir o nível mais baixo da existência. E ainda ficamos contentes. Pelo menos para mim é assim. O que pode haver a seguir?
Gostaria de poder pensar que tudo isto seria uma função minha que está a ser suavemente levada até à saturação, mas não se trata de nada disso. Amor, paixão, enamoramento, loucura, qualquer que seja a merda que reverbere como um enorme e cada vez maior cérebro pulsante que domina tudo e todos de centro do inferno, como alguém disse, está conceptualmente morta, em termos práticos. Acho eu. Tudo o resto são postais do Dia dos Namorados e compras nos hipermercados aos Domingos.
Quero eu dizer, quantos tipos que pintam como Picasso se conseguem hoje encontrar? Estão a perceber? O amor é uma treta.
Conheço-te há tanto tempo que parece que não tive vida antes disso. Foi quase no fim de 1994, tinha eu 23 anos e ainda acreditava. Naquele dia 13 de Janeiro de 1995 vi-te a olhar para mim, fui falar contigo, embebedaste-te e partiste com o resto da turba. Depois, regressaste, conversámos, fomos consumir fumícios e ficamos juntos toda a noite. Fomos para Sines e levaste-me ao castelo. Subiste à muralha e gritaste "vão todos para o caralho", muito alto. A seguir, com um salto, aterraste à minha frente e beijaste-me, pela primeira vez. Era de noite e fazia frio.
Muito disto é apenas uma névoas fugaz na minha memória, mas tão viva no resto.
Quando me pediram para dizer algumas palavras sobre alguém que me possuiu a alma, disseram que não era necessário fazer uma retrospectiva pura e dura. Ainda bem, porque não me quero lembrar de muita coisa. Já não vale a pena. Em muitos aspectos, toda aquela cena parece ter-se transformado numa espécie de orgia drogada e alucinogénica da qual nós éramos as estrelas, uns verdadeiros alien superstars.
Tornámo-nos A COISA.
Vivemos A COISA.
E A COISA foi boa, pelo menos por uns tempos.
A COISA funcionou, alimentada por um sentimento de pertença e manteve-se unida por um silencioso cimento espiritual. Abriram-se novos horizontes e tudo era bom.
Todas as nossas noites juntos eram como a queda do Muro de Berlim, uma e outra vez, até ao colapso. Havia a sensação de que tudo era possível e as nossas aventuras reflectiam este sentimento de maravilha e deslumbramento.
Então A COISA tornou-se canibal.
Nós os dois sofremos uma espécie de overdose, ficámos loucos, caímos vítimas de tudo, tornámo-nos dependentes do nosso inferno, fomos roubados e maltratados. E a cada novo ano anunciámos um novo Verão do Amor. Doente, não é?
A verdade é sempre muito mais selvagem do que a nossa ficção privada.
sexta-feira, abril 08, 2005
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
1 comentário:
Gostei!
Enviar um comentário