quinta-feira, março 31, 2005

Palimpsesto

Gostaria de errar pelo mundo, tornando-me imoral como um pajem de Hogarth. Um nómada sem nacionalidade. Na idade que tenho desejaria que todos parecessem crianças a meu lado. Mas apenas em determinadas ocasiões, porque em mim continuaria a residir uma jactância e um entusiasmo que os outros haviam perdido algures na sua adolescência mais desocupada, nos campos de jogos, ou nas salas de aulas. Os meus vícios revelar-se-iam menos na busca do prazer do que no desejo de chocar, por entre um inebriante labirinto de exibições elegantes. O selvagem que os decentes domesticariam continuaria e predominar em mim. E seria cruel, naturalmente, com aquela maneira sádica dos falsos impolutos de se imporem a todas as verdades do mundo. Avançaria de cabeça baixa, agitando os punhos, em pequenos movimentos, contra o mundo dos outros.
Entre dois goles de Crystal cor-de-rosa diria: "A vida? É como engolir um espectro!". E sorriria. O segredo seria só meu.
Algo de vagamente horrível se instalaria dentro de mim e eu pensaria: sou um ser arcaico, sinto-me como se tivesse saído de uma caverna encerrada há séculos. Olharia para o meu reflexo num espelho veneziano, em espiral, e ficaria com a certeza de que o meu rosto havia sido esculpido por um escultor azteca ao tentar fazer um retrato de um qualquer deus falhado e mortal, símbolo de um fim que estava a demorar o seu tempo para se fazer anunciar.
Em frente ao espelho, rodeado pelas sombras de uma decadência sem remissão, saberia: sou um fanático culto, um bárbaro cerimonioso, um lama preso à neve... Almas boas diriam que devia haver uma inquisição de propósito para me queimar.
Nos meus anos dourados seria, talvez, um pouco anafado, mas muito elegante, magnífico, voluptuoso, byroniano, aborrecido, contagiosamente indolente, de maneira nenhuma o género de homem que se possa imaginar facilmente vencido. Teria o ar de quem havia gozado a sua vida, coroado com todas as flores de Sodoma e Gomorra.
Aos outros, apresentar-me-ia com uma impressionante normalidade, naturalmente estudada, mas eficaz. Seria como se me apercebesse da tal aura byroniana e a achasse de mau gosto, tentando anulá-la. Estaria de pé, numa qualquer varanda, apenas uma figura alta e direita, cujo rosto se encontraria mergulhado numa densa sombra quando, finalmente, me voltasse e cumprimentasse as pessoas. Falaria com simplicidade e naturalidade, impressionaria. Quando a luz do entardecer revelasse o meu rosto, por fim, este seria nobre, com um autodomínio que pareceria premeditado: apenas levemente cansado, apenas levemente sardónico, apenas levemente voluptuoso. Pareceria estar no apogeu da vida. Os outros achariam difícil de acreditar que tivesse aquela idade. Só o meu profundo aborrecimento que, por vezes, transpareceria, inevitavelmente, que a máscara seria árdua de usar, trairia essa imagem. Mas, de resto, um cavalheiro perfeito, blasé, sem paixão, desejando o conforto e a tranquilidade, seguindo o sol... um lamento suave até ao fim. E, nessa altura, o meu espírito recordaria o langor da juventude, saciado, pensaria como tinha sido único e sublime, como se tinha perdido depressa e como fora irrecuperável. O entusiasmo, a generosa afectividade, todas as ilusões, o desespero, esses atributos tradicionais da juventude que vão e vêm connosco ao longo da vida, uma parte da própria vida. Sim, mesmo o desespero. Mas o langor, aquele momento de relaxamento dos músculos ainda por gastar, aquele espírito que se isola, prenhe de todo o seu amor-próprio, esse pertencera apenas à juventude e com ela morrera. Sorrindo, pensaria que, talvez nas mansões do Limbo, alguma estirpe de heróis pudesse gozar tal compensação, pela perda dessa visão beatífica. Talvez essa mesma visão pudesse ter alguma vaga afinidade com a mão-cheia das muito pouco elevadas experiências pelas quais passara. Talvez. Seja como for, a certeza de que havia estado muito perto do Céu, em algumas dessas experiências, já não me abandonaria. Seria o palácio encantado que me acolheria.

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