Sinto o mundo à minha volta estranhamente coberto por uma fina camada de pó avermelhado. Tudo recorda os restos da noite, uma noite entre muitas. Um silêncio sepulcral cai sobre mim. Ainda cheira ao que cheiram as noites como esta. Os despojos estão um pouco por todo o lado. O costume. Sorrisos no meu rosto. Hei-de encher tudo isto com miríades de criaturas maravilhosas, dispostas a tudo, a minha dádiva à sociedade, o meu século vinte e um. Sei que, algures por ali, há corpos em repouso após mais uma épica batalha. Na semi obscuridade daquele tempo sem tempo, sou abençoado com tanta beleza que se torna difícil de suportar. Sinto as pernas tremerem e quase choro. Ali está a realização de toda uma vida. Já não existe o mundo lá fora, mas apenas o meu mundo, o meu circulo infernal de beleza e sacrifício. Acho que estou irremediavelmente apaixonado, mas com uma paixão que não puxa ao sentimental. Posso ser acusado de muita coisa, mas não de ser sentimental. O quadro que ali se me apresenta unta o meu desejo de espectador, do grande voyeur que habita aqui dentro, porque ali está a carne de que os meus sonhos tornados reais se compõem. Os rostos têm expressões rendidas, dispostas a tudo, com os olhos cerrados e os corpos pousados uns nos outros, numa cena com algo de pornográfico, misturado com uma certa companhia amorosa, um certo consolo fascinado, uma indescritível submissão. As coisas são tal como são, por isso este quadro que está aqui à minha frente deve ser verdadeiro: a nudez, a obscuridade, os meus pensamentos, as cores diferentes das peles, a cortina esverdeada, as respirações em uníssono. Sou o príncipe dos perversos e o reles proxeneta, sendo o príncipe e o proxeneta o mesmo ser. Um disfarça-se do outro, para melhor conhecer as forças e as fraquezas mútuas, para desfrutar da realidade, sem qualquer tipo de mediação, do poder, do título, do nome. É possível que, por trás do secretismo e da excentricidade fatal e boémia desta minha existência, esteja um desejo quase freudiano de me evadir do meu nome, de matar a minha identidade terrena, que passa sem muita glória por esta vida, e de acabar com o mundo que me originou, esse mundo tremendo de regras, proibições e superstições. E que originou esta reivenção cheia de sexo, de dinheiro, de falta de respeito pelas coisas ditas boas e recentes da vida. Sexo, dinheiro, poder, a santíssima trindade da perdição humana. A minha realidade.
Ali à minha frente, está o que sempre procurei, o corpo humano deste início de século vinte e um, fruto da segunda metade do século vinte, depois das guerras e da invenção da angústia moderna, depois das máquinas e da invenção do futuro, depois da morte dos deuses e da morte do amor. É isto. Exactamente isto. Corpos sobre os quais a literatura poderia contar fábulas sem fim, corpos que atraem as palavras, as divagações, as histórias, se acharmos que a essência da literatura ainda pode ser essa, uma história contada através de palavras. As histórias que eu crio sobre aqueles (e muitos outros) corpos enigmáticos, com a sua carne branca raiada de rosa e bronze, os órgãos genitais de frente para o mundo, os cabelos desalinhados e suados, as linhas de expressão por vezes desencantadas, mas sempre belas, a ausência essencial dos medos do costume: a morte, a vergonha, a culpa, os outros. São belíssimos estes corpos que não têm medo do seu poder, do seu espaço, do que podem ser capazes, e que nos atiram à cara, em puro desafio e com uma sobranceria despudorada, essa coragem da realidade. A mesma sobranceria fechada em desdém que eu faço passar como imagem de marca, como desafio para o resto do mundo. Os corpos, como as plantas e as folhas verdes dos quadros de Lucian Freud, com os seus interiores desmanchados, os seus lençóis amachucados que ainda cheiram a sexo, as suas caras adormecidas, e as suas formas voluptuosas, são tratados sobre uma humanidade mergulhada numa perfeição muito minha. Sem filtros, sem que a solidez dos desejos ceda à liquefacção das obrigações. Em nome da estética. Num mundo saturado de beleza a todo o custo, através de cirurgias, e dietas, por causa de modas e da moda, de ideais impostos, de ginásios e cosméticos, de revistas ilustradas e homens e mulheres que se mexem como corpos de papel e reflexos de ecrã, aqueles corpos adormecidos são a evidência da realidade dos meus sonhos. Olho para eles e sei que, no universo inteiro, e não importa o que diz essa gente da Física Quântica e da Ciência, da Astronomia e da Matemática, não existem outros corpos iguais àqueles. Eles são, na sua nudez e no seu pecado original, irrepetíveis. Únicos. E são únicos não por causa de uma qualidade intrínseca, não por causa da mão algo crispada, da expressão concentrada, da brancura da pele, ou da ternura da boca, ou das suas posições dentro do quarto e da cama, não por causa da expressão sem expressão do meu rosto enquanto os observo, não por causa das desordens amorosas de Sábado à noite e das ressacas e olheiras de Domingo de manhã. São únicos porque me atrevi a ser único. Porque deixei os meus demónios à solta, contra ventos e tempestades. E, ou muito me engano, ou não hão-de existir demónios tão livres como os meus. Para o melhor e para o pior. São eles que me tornam universalmente irrepetível. Filho de Deus, portanto. Suprema ironia...
Feliz aniversário, Marti. É por causa de almas como a tua que vale a pena andarmos por cá. Um abraço grande.
terça-feira, março 15, 2005
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1 comentário:
Obrigado Marquês, por estas palavras, por todas as palavras que ao acordar me fazem espreitar-te em geito de voyer silêncioso e me deixam sempre de lágrima ao canto do olho. Logo de manhã como a dizer-me: ...vale a pena...esta solidão é uma mentira fruto do teu egoismo...vale a pena!
Obrigado por esse arame de amor inteligente em que te equilibras e corajosamente partilhas connosco.
Obrigado por estares por aí nestas manhãs fazendo, só nossas, todas as manhãs do mundo...
Guardei-te uma fatia de bolo, não sei se estará capaz, mas guardei!
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